VELAR-SE
A névoa rasteja entre os túmulos, como se tentasse ocultar a dor que ali repousa. O cemitério é um labirinto de memórias esquecidas, onde lápides não carregam nomes, mas os fragmentos de sonhos que um dia arderam vivos. Brinquedos quebrados, cadernos de desenhos amassados, bexigas murchas que um dia flutuaram sob o céu de uma infância distante.
Apesar do sussurro constante das árvores, carregado pelo vento, o mundo ao meu redor parecia mergulhado em um silêncio. Era como se a única direção possível fosse para frente, mas a cada passo, o nevoeiro se adensava atrás de mim, apagando qualquer vestígio do caminho percorrido. Eu olhava para trás, buscando algo – um rastro, uma lembrança, uma prova de que um dia existira algo além dessa névoa –, mas tudo o que encontrava era o vazio devorando meu passado.
As perguntas martelavam em minha mente: onde estou? Para onde vou? Mas, mais do que isso… quem eu era antes de tudo isso? Quem eu poderia ter sido, se o tempo não tivesse me arrastado para esse instante irreversível? Eu não sabia. E talvez nunca soubesse.
Ao meu redor, a realidade me empurrava para frente, indiferente à minha hesitação. Não havia escolhas, apenas a marcha forçada da vida, impiedosa em sua exigência. E ali, sob a terra úmida, cada lápide se erguia como testemunha do que fui obrigada a enterrar—não um corpo, mas sonhos desfeitos, a ingenuidade perdida, a própria capacidade de imaginar um futuro que nunca mais viria.
Caminho lentamente, cada passo afundando no solo úmido, reverberando como um eco dentro de mim. O vento sussurra palavras que se dissipam antes de se tornarem compreensíveis, fragmentos de algo que nunca conseguirei decifrar. Seguro a pá com força, os dedos dormentes se fechando ao redor da madeira áspera, como se, de alguma forma, esse gesto pudesse me ancorar à realidade que ameaça se desmanchar ao meu redor.
A chuva cai em fios finos, lágrimas derramadas por um céu pesado de luto. Cada gota escorre por minha pele fria, impregnando as roupas até que o tecido se torne um fardo, pesando sobre mim como se quisesse me afundar naquele solo encharcado. Mas não é a umidade que torna cada passo mais difícil—é a certeza de que estou andando para um destino irreversível. Cada avanço é um sacrifício, uma renúncia ao que fui, ao que sonhei, ao que poderia ter sido.
Meus olhos vagueiam pelas sepulturas, lendo epitáfios invisíveis gravados na pedra pelo tempo e pelo cansaço. Aqui jaz a coragem de sonhar. Aqui repousa a fantasia infantil, sufocada pelo peso do real. Eu nunca quis acreditar que esse lugar existia. Passei a vida inteira me agarrando à ilusão de que a imaginação sempre encontraria um refúgio, que o mundo não conseguiria me arrancar o direito de sonhar.
Mas eu estava errada.
“Coloque-se no chão.” Essas palavras, que tantas vezes ouvi de vozes que desistiram de si mesmas, agora escapam dos meus próprios lábios. Não como uma ordem, mas como um sussurro exausto, uma tentativa desesperada de controle. Nunca pensei que um dia diria isso para mim mesma. Nunca pensei que, ao tentar me proteger, estaria assinando a sentença de morte daquilo que me fazia viva.
Uma risada breve, quase um sussurro, cortou o silêncio. Levantei o olhar, buscando a origem daquele som inconstante, mas o vento já o havia levado, dissipando-o como um eco de algo que nunca mais voltaria.
E então, veio à lembrança.
Vi-me correndo pelas ruas, pulando amarelinha, brincando de pega-pega, vivendo mil vidas dentro da minha própria mente. Cada passo era uma aventura, cada sombra escondia um segredo, cada momento era um universo inteiro esperando para ser descoberto. Lembrei-me dos cenários que minha imaginação projetava, de histórias tão absurdas quanto maravilhosas, tão improváveis quanto irresistíveis. E, mais do que tudo, lembrei-me da crença—da certeza—de que um dia tudo aquilo poderia se tornar real.
O entusiasmo pulsava em mim, ardia como uma chama viva. Cada novo sonho era um desafio, cada meta inalcançável era apenas uma questão de tempo até ser conquistada. Nada era alto demais, grande demais, impossível demais. Porque sonhar era natural, essencial, inevitável.
Mas agora… agora tudo parece pequeno. Bobo.
Agora, sei que não faz sentido.
A realidade é uma muralha inacessível, uma sentença imutável. Você pode se deitar à noite e imaginar um novo mundo, uma nova história, um novo destino. Mas, no instante em que acorda, tudo desmorona. O que antes era grandioso demais para ser ignorado agora se tornou ridículo demais para ser dito em voz alta. Porque não há espaço para isso. Não há permissão para isso. E, no fim, só nos resta aceitar que a realidade nunca será como gostaríamos que fosse.
Minha garganta se aperta. Não. Isso não pode estar acontecendo.
Como pode algo tão essencial simplesmente desaparecer? Como pode aquilo que um dia foi minha essência se dissolver, como areia escorrendo entre os dedos? Meu corpo hesita, minha mente luta para encontrar uma saída, um artifício qualquer para negar o inevitável. Mas, quando ergo os olhos, não há mais crianças correndo, não há mais vozes chamando. Apenas a cova aberta. E a certeza de que já é tarde demais.
Raiva. Ela me consome como uma chama fria, queimando sem pressa, corroendo de dentro para fora. Meu olhar percorre o vazio ao meu redor, buscando um culpado, alguém a quem eu possa amaldiçoar por essa ruína. Seria o mundo, com suas regras cruéis, que exige obediência e perfeição enquanto esmaga qualquer lampejo de liberdade?
Ou seriam aqueles rostos—os que riram, os que desacreditaram, os que trataram cada um dos meus sonhos como delírios infantis? Será que teriam sido alertas disfarçados de desdém, me dizendo para aproveitar antes que fosse tarde demais? Ou apenas insultos sutis que, gota a gota, me fizeram acreditar que eu nunca seria capaz?
Ou seria eu? Eu, que permiti, dia após dia, que esse funeral fosse marcado sem resistência. Eu, que cedi à realidade, que silenciei a voz da criança que um dia acreditou que o mundo poderia ser algo além disso.
Meus punhos se fecham, mas não há nada a golpear além do vazio que me cerca.
Quando somos crianças, cada brincadeira tem o potencial de se tornar real. Não importa quão improvável, dentro de nós, ela já existe. Um lápis e um papel não são apenas objetos; são passagens para universos inteiros. Uma criança sentada à mesa pode ser a maior empresária do mundo, a professora mais sábia, a heroína de uma história épica. Tudo é possibilidade. Tudo é aventura. No fim, tudo pode acontecer.
E eu? Eu vivi todas as vidas que quis. Fui tudo o que sonhei. E então, por que agora nada é suficiente? Por que a sensação de realização nunca chega?
Sinto raiva por ter perdido tempo demais. “Aproveite.” Eles avisaram. Mas eu não ouvi. Achei que teria mais tempo.
Esse é o nosso erro. Sempre acreditamos que haverá mais tempo. Tempo para tentar, para falhar, para recomeçar. Tempo para resgatar o que foi deixado para trás. Tempo para se encontrar de novo.
Mas agora, já não há tempo. Aquele mundo onde tudo era possível se foi. Agora, encontro-me trancada neste labirinto de bloqueios e dúvidas, sem saída, sem volta. Sem casa. Porque a verdade é que, naqueles momentos de imaginação, eu estava em casa. E agora, ela não existe mais.
A pá rasga a terra com um som oco. Eu me recuso a enterrá-la. Me recuso a vê-la partir.
E se houvesse um meio de recuperar o que foi perdido? E se existisse um caminho de volta? Meu coração anseia por uma saída, por um ato de redenção. Mas a terra que retiro é pesada demais, úmida demais, definitiva demais. Não há como desenterrar o que já foi.
Estou enterrando tudo aquilo que um dia sonhei ser. Como isso pode permanecer, se no fundo eu sei que, por mais que queira, nunca serei? Porque a vida é sobre isso: escolhas, oportunidades. E, dentro desse jogo cruel, eu não tenho nem um, nem outro. A vida decidiu por mim. Ela impôs limites, traçou um destino inescapável. Desenhou um caminho no qual nada mais importa.
Como se importar, quando o mundo inteiro segue regras que sequer fazem sentido? E ainda assim, as ideias mais puras, as mais ousadas, são descartadas, esmagadas sob o peso do julgamento, fazendo com que, dia após dia, as pessoas se limitem cada vez mais. Se diminuam, se contenham, se moldem para caber em expectativas que não são suas.
A cada cobrança. A cada olhar crítico. A cada nova renúncia. A cada expectativa que se impõe como uma jaula.
Ajoelho-me. O chão frio se infiltra na pele, e, pela primeira vez, a dor se instala de forma absoluta. Diante de mim, jaz um corpo. Não um corpo. Uma sombra. Um reflexo do que fui.
Choro pelo que perdi. E choro ainda mais porque não sei como recuperar. Seus olhos não brilham mais. Meus olhos não brilham mais. Não há mais risos. Não há mais perguntas ingênuas sobre o impossível. Tudo se foi. O peso da ausência me sufoca, e a certeza do fim se desenha diante de mim com uma clareza cortante.
Dizem que amadurecer é essencial, mas por que sonhar não deveria ser?
Não falo do sonho pequeno, limitado à sobrevivência de mais um dia. Falo daquele que ultrapassa barreiras, que nos impulsiona a acreditar no impossível. Mas por que tudo tem que ser tão difícil? Por que crescer parece ser sinônimo de esquecer? Esquecer as pequenas coisas, os pequenos detalhes, os pequenos sonhos que nos faziam seguir em frente?
E nem sempre é sobre o tempo. Apesar de ter acabado de lamentá-lo, sei que cada novo dia carrega uma oportunidade de fazer diferente. A questão é: como recuperar aquele brilho no olhar? Como resgatar a vontade de conquistar o mundo quando o próprio mundo já não parece digno de ser conquistado?
Gostaria de reencontrar essa essência. De recuperar o que foi perdido. Talvez em uma tentativa ingênua de reviver, por um instante que seja, aquilo que eu não soube que mudaria. De dizer adeus antes que tudo se transformasse.
A última pá de terra sela o túmulo. Permaneço ali por um tempo que não sei medir, olhando para o nada. Suspiro com dor, tentando recuperar o fôlego para continuar no novo caminho que, pouco a pouco, se forma diante de mim. Espero que o silêncio se torne confortável, que, em algum momento, ele se molde ao meu corpo cansado.
Aos poucos, a névoa se dissipa, mas o céu permanece nublado e sombrio. O mundo não se tornou menos frio, nem menos hostil. Talvez essa seja a prova de que posso seguir em frente.
Levanto-me, deixando a pá para trás. Caminho entre os túmulos e percebo que, mesmo mortos, os sonhos ainda deixam vestígios—pequenos ecos de algo que um dia foi belo.
Fecho os olhos e inspiro profundamente.
Não há como voltar. Não há como desenterrar aquilo que já foi.
Mas há um caminho adiante. E eu sigo.